Lia eu hoje de manhã que o Zizek é como o Rorschach: cada um vê nele o que quer ver. Achei
piada à ideia, mas não liguei muito nem estava, à data, suficientemente
documentada para concordar ou discordar. Agora, à noite, pus-me a ler Problemas
no Paraíso, que o simpático Pato Donald esloveno (uma anáfora tão boa como
qualquer outra) publicou em 2014, e não é que aqueles gajos tinham razão?
Dizia ele que o pior do comunismo
e do capitalismo não deviam ser varridos para debaixo do tapete com a desculpa
de que essas modalidades não são as puras, as verdadeiras. E eu lembrei-me
daquelas campanhas de consciencialização para a violência de género em que
aparecem homens a dizer que “os homens a sério não violam” e de como essa ideia
é perigosa. Tal como é perigosa, num outro patamar, a ideia de que “a praxe
abusiva não é praxe”. Os homens que violam não fazem parte de outra espécie,
não são de outra tribo, e a praxe abusiva continua a ser praxe. Há que
reconhecer as maçãs podres como parte do grupo em que nos inserimos e saber
que, mais importante do que nos distanciarmos delas, é perceber o que está na
sua raiz; compreender que temos a capacidade de sermos tão más quanto elas.
Separam-nos os valores, a índole, a moralidade, a empatia – o que quer que
seja – mas as relações hierárquicas de poder estão enraizadas no tecido social.
São elas que permitem a um homem (latu
sensu) sentir-se no direito de abusar da sua autoridade e poder.
Falava o Zizi, mais à frente, na
Europa que impõe à Grécia medidas de austeridade para não se endividar mais,
impedindo, com essas mesma medidas, que consigam pagar a dívida. Uma pescadinha
de rabo na boca, e sabemos bem quem está na cauda. E eu pus-me a pensar que
falamos de FMI, da Europa, da Grécia, e lhes atribuímos sentimentos, relações
de dominação e submissão, de vergonha e culpa, como se de pessoas se tratassem.
Tomamos o todo pela parte, e a parte são pessoas que, num todo que se pressupõe
homogéneo, se transformam num sistema. Mas e se a máquina se desligasse? A Merkel
amanhã não vai trabalhar. Ninguém pensa na banca, nem na dívida, larga tudo a máquina
capitalista e deixa-a ao abandono. A luz vai abaixo, o sistema colapsa. Os
signos deixam de ter referentes E depois? Depois teríamos de pegar em nós, em
cada um de nós, de nos agruparmos, de nos associarmos e reconstruirmos tudo do
zero. Ninguém parava este meu comboiinho do delírio, mas depois apercebi-me de que
isto era uma ideia muita anarquista e enxotei-a.